facebook

sobre

newsletter

instagram

início

bendegó #1

 

A esponja do mar é o ser vivo de maior capacidade de regeneração, mesmo se triturada, consegue se recompor completamente em questão de dias. Nós, os seres humanos, também temos a capacidade de regenerar os nossos órgãos, não só a partir de nosso próprio organismo, mas também com o auxílio de plantas, remédios ou cirurgias. Ao ferirmos nossa pele, por exemplo, podemos optar pelo uso de pomadas para acelerar o processo de cicatrização. A combinação das substâncias neomicina e bacitracina é a base de um dos remédios mais famosos para esse fim: o Nebacetin. Juntas, essas substâncias são capazes de interromper a síntese proteica das bactérias - que é o processo responsável por sua proliferação e consequente inflamação da ferida. A fissura sangrenta que até então deformava a nossa pele vai lentamente se reconstituindo e o registro da cicatriz permanece apenas na memória. A ação de tais substâncias em nosso corpo opera na esfera do visível e do invisível, no entanto, o que pode ser visto à olho nu, na superfície da pele, nunca parece dar conta da riqueza de interações que ocorrem na escala microscópica.

 

De um lado, temos então o Nebacetin: pomada desenvolvida para acelerar/estimular o processo de cicatrização de uma ferida e, portanto, para superar as capacidades orgânicas do corpo humano; de outro, o microscópio: instrumento que torna possível visualizar a ação da neomicina e bacitracina no organismo. Ambos nos permitem ir além dos limites que nos são impostos como humanos, nos oferecendo o acesso à universos longínquos e aparentemente inacessíveis, como o tempo acelerado e a visão aumentada.

 

A ideia de uma natureza humana foi ao longo do tempo sendo questionada e remodelada, desde fins do século XX os purismos e dicotomias que fundamentaram o pensamento moderno tais quais sujeito x objeto e natureza x cultura parecem não ter mais onde se sustentar. A imagem do Ciborgue nos ajuda a pensar não só nas formas de operação dos nossos corpos individuais e coletivos neste século XXI, mas também nas categorias que estruturam o nosso pensamento: ambas são indissociáveis dos híbridos, das contaminações, das trocas, da impermanência. As categorias não funcionam mais quando pensadas como coisas estanques, elas habitam territórios lamacentos e movediços, assim como as relações corpo-corpo, corpo-máquina, corpo-espírito, corpo-tecnologia. Aliás, onde termina um e começa o outro?

 

Em sua primeira edição, bendegó busca esboçar imagens de cenários que, se não pertencentes à escala microscópica, parecem habitar realidades ainda pouco acessíveis à olho nu. Os trabalhos que reunimos aqui podem ser pensados como mediadores entre as escalas do visível, como instrumentos que nos permitem ir ao além, nos apresentando outras possibilidades do real.

 

Em "raspsy", Luciana Ohira e Sergio Bonilha se baseiam no método de transcomunicação instrumental de Klaus Schreiber, que consiste na tentativa de encontrar imagens vindas de um outro plano ao apontar a câmera de vídeo para um monitor de TV com uma configuração de videoloop-feedback. Schreiber diz não ter desenvolvido esta técnica sozinho, mas sim ter ouvido instruções do além, através do gravador de áudio durante uma sessão de FVE (Fenômeno de Voz Eletrônica), que proferia a seguinte frase: " -Bald siehst du uns im Fernsehen" (Você nos verá em breve na TV)

 

As lendas caipiras de Denise Alves-Rodrigues tentam dar conta da memória de uma infância-juventude vivida nos interiores de São Paulo e Mato Grosso, marcada por histórias que escapam do cerco da lógica da cidade grande. O uso de uma escrita que dispensa vírgulas na maior parte do tempo nos aproxima do tom de um discurso oral acelerado, sem respiro, que parece estar isento de elaborações ou filtros, indicando um retrato fiel do ocorrido. Por outro lado, o teor fantástico dos relatos coloca o leitor mais cético na posição de dúvida em relação ao que é real e o que é inventado. Não existe uma só verdade quando há um receptor e um interlocutor: nenhuma narrativa está completamente descolada da ficção.

 

Em O que é visível, o que é invisível, o que pode ser visto e o que não pode ser visto Julia Coelho investiga a condição de invisibilidade do otá - pedra sagrada para o candomblé habitada pelo orixá - na amplificação de sua força e de como esse elemento propõe uma nova leitura na relação entre coisas e pessoas, esgarçando as categorias de sujeito e objeto. A partir do encontro entre Julia e alguns otás expostos no Centro Cultural São Paulo em 2015, a pesquisa ganha mais um ponto de interesse: como seria pensar em uma exposição de objetos de arte dotados de um poder ou uma vida a partir de outro objeto poderoso que não pode ser visto e muito menos musealizado?

 

O caráter descritivo de Sloughing slits  por vezes nos coloca diante de imagens mais do que de palavras, imagens que ganham forma e movimento. Em contato com texturas viscosas e materiais reluzentes, transitamos entre o ambiente laboratorial e a academia de malhação: são esses dois lugares onde o corpo pode cruzar a fronteira do "natural" e onde a imagem sobrevive como prova de um experimento. Felipe Meres utiliza a escrita como um ato performativo - os métodos utilizados na construção de seus trabalhos são em parte descritos em seu texto - e nos localiza, através de sua produção, entre as esferas do artificial, virtual, microscópico, real e inventado.

 

Claudia Rodriguez Ponga Linares investiga em seu artigo a relação entre razão e magia na cultura contemporânea através de uma análise sobre as formas de existência dos assuntos mágicos em curadorias de exposições de arte. Ora sendo abordada de maneira superficial e reticente, ora sendo incorporada como estrutura dos discursos curatoriais, a magia, por pertencer ao campo do desconhecido, parece apontar para uma alternativa às formas de pensamento hegemônicos e possibilitar à arte novas maneiras de operar e refletir sobre o seu poder real hoje.

 

Alice Shintani em #Zika faz uso da internet para compartilhar uma série de pinturas que ganham corpo a partir do seu processo de intelecção dos eventos ou objetos que a rodeiam: os vegetais que traz da feira para uma nova receita, os acontecimentos políticos estampados nas capas de jornais, as histórias dos livros e dos filmes, as embalagens dos produtos do café da manhã, as narrativas esquecidas ou submersas. Afetada por leituras sobre as formas de pensamento, ideia apresentado por Annie Besant, de que os pensamentos emitem vibrações que tem cores e formas e podem ser vistos por aqueles de maior sensibilidade espiritual, Shintani nos aproxima, através dessas pinturas, de suas reflexões sobre sua prática e sobre seu estar no mundo.